É sempre impenhorável o imóvel onde reside o devedor? Exceções à impenhorabilidade do bem de família
por Kely Vida Leal
Em regra, o imóvel onde reside o devedor é considerado bem de família e, por isso, conforme prevê o artigo 1º da Lei nº 8.009/1990, não responde por dívida de nenhuma natureza e é, portanto, impenhorável.
Contudo, a impenhorabilidade do bem de família não é absoluta e, conforme leciona Rita Vasconcelos, “não basta que o imóvel seja destinado à residência do casal ou da entidade familiar, para que incida o benefício. Seu reconhecimento, ainda que se admita possa ser de ofício, depende de circunstâncias especiais, referidas na própria Lei”[1].
De acordo com o artigo 5º, caput e parágrafo único, da Lei 8.009/1990, é impenhorável o único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente, entretanto, se a entidade familiar tiver mais de um imóvel como residência, somente o de menor valor será considerado bem de família, de modo que todos os demais imóveis do devedor serão passíveis de penhora, apesar de serem utilizados para moradia da entidade familiar.
Se, por exemplo, o devedor é proprietário de dois imóveis, sendo o de maior valor utilizado para sua própria residência e o de menor valor utilizado para moradia de seu filho, considera-se bem de família somente o imóvel onde reside o filho e é possível penhorar o imóvel mais caro, onde mora o pai. Há, inclusive, diversos precedentes do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nesse sentido[2].
Todavia, o artigo 1.711 do Código Civil prevê a possibilidade de instituir bem de família mediante escritura pública ou testamento, desde que o valor do imóvel não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição.
Com isso, é possível afastar a regra de que o imóvel de menor valor seja considerado bem de família. Portanto, reportando-se ao exemplo anterior, se houver prévio registro de instituição de bem de família sobre o imóvel mais caro onde reside o pai, este será impenhorável, ao passo que caberá penhora do imóvel de menor valor onde reside o filho.
Cabe destacar ainda que, conforme lembra Maria Berenice Dias[3], a proteção ao bem de família tem por objetivo garantir o mínimo necessário à sobrevivência familiar e não inviabilizar por completo as garantias do credor. Justamente por isso, ela não é absoluta e deve ser sopesada com outros direitos fundamentais.
[1] VASCONCELOS, Rita. Impenhorabilidade do bem de família. 2 ed. São Paulo: Editora RT, 2015, p. 212.
[2] “AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO DE EXECUÇÃO – BEM DE FAMÍLIA – IMPENHORABILIDADE – RESIDÊNCIA DO FILHO DO EXECUTADO – ENTIDADE FAMILIAR – […] Agravante que é proprietário de dois bens imóveis, sendo um utilizado para sua residência, e outro utilizado pela sua entidade familiar – III – Cabível a proteção legal prevista na Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 5º, parágrafo único, c.c. ao art. 226, §4º, da CF – Lei que garante a impenhorabilidade apenas sobre o bem imóvel de menor valor – Questão que depende de dilação probatória a ser dirimida perante o MM. Juiz “a quo” – Precedentes deste E. TJSP e do C. STJ – Decisão reformada em parte – Efeito suspensivo revogado – Agravo parcialmente provido, com recomendação”. (TJSP; Agravo de Instrumento 2102219-28.2021.8.26.0000; Relator: Salles Vieira; Órgão Julgador: 24ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VII – Itaquera – 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 27/09/2022; Data de Registro: 27/09/2022).
“Agravo de Instrumento – Execução de título extrajudicial – Penhora sobre bem imóvel – Alegação de impenhorabilidade – Descabimento – Nos termos do artigo 5º, da Lei nº 8.009/1990, a impenhorabilidade advinda do benefício do bem de família recairá sobre o “único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente” – Evidenciado, nos autos, a existência de inúmeros outros imóveis de titularidade do executado (e, por conseguinte, de sua viúva, observado o regime da comunhão total de bens), a impenhorabilidade deve recair sobre aquele de menor valor – Artigo 5º, parágrafo único, da Lei nº 8009/1990 – Inexistência de quaisquer elementos de prova idôneos que evidenciem que o imóvel controvertido se apresente como de menor valor – Impende esclarecer, ainda, que o fato de o bem ser de titularidade conjunta da viúva recorrente e dos demais herdeiros do autor da herança executado não configura óbice à sua constrição – Bem indivisível – Possibilidade da penhora recair sobre sua totalidade, desde que resguardada a quota-parte dos demais coproprietários – Artigo 843, “caput”, do Novo Código de Processo Civil – Recurso a que se nega provimento, com observação. (TJSP; Agravo de Instrumento 2187100-98.2022.8.26.0000; Relator: Mauro Conti Machado; Órgão Julgador: 16ª Câmara de Direito Privado; Foro Regional VI – Penha de França – 4ª Vara Cível; Data do Julgamento: 12/10/2022; Data de Registro: 12/10/2022).
[3] “Os novos valores a serem protegidos pelo bem de família podem ser resumidos na noção de mínimo vital, que visa a preservar as bases de dignidade do devedor para que possa recomeçar a vida, mantendo íntegra a sua personalidade. O princípio da dignidade humana leva o Estado a garantir o mínimo existencial para cada ser humano em seu território. A tendência é encontrar instrumentos hábeis que preservem o devedor e que, ao mesmo tempo, não frustrem a garantia do credor. […] O direito real de habitação assegurado ao cônjuge e ao companheiro sobrevivente, apesar de dispor da mesma natureza protetiva, não se confunde com a noção de mínimo vital nem pode ser reconhecido como bem de família”. (DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 11 ed. São Paulo: Editora RT, 2016, p. 360).
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