Os impactos do treinamento da inteligência artificial a partir do acesso a plataformas de streaming de música: violação aos direitos autorais dos artistas?
por Renato Del Grande de Souza
O avanço das tecnologias de Inteligência Artificial (IA) tem proporcionado uma série de debates éticos, morais e jurídicos a respeito dos limites a serem observados para que essas novas ferramentas, de fato, contribuam para o desenvolvimento da sociedade.
No que tange ao mercado da música, recentemente, veiculou-se na mídia uma notícia a respeito de a Universal Music Group (UMG), principal gravadora do mundo, ter solicitado a companhias que prestam serviços de streaming de música, como Spotify e Apple Music, a adoção de medidas voltadas a impedir que sistemas de IA acessem suas plataformas, a fim de resguardar direitos autorais dos artistas representados pela gravadora.
Trazendo a discussão para o âmbito jurídico e, sob o prisma da legislação brasileira, é relevante, em primeiro lugar, ter em mente quais seriam as obras passíveis de proteção pela Lei n. 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais). A esse respeito, o artigo 7º do referido diploma legal estabelece que “são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível”, tais como “as composições musicais, tenham ou não letra” (inciso V).
A redação do dispositivo chama atenção pelo emprego da locução “criações do espírito”, assimilada pela jurisprudência como sinônimo de “originalidade”, “criatividade” ou “expressão artística pessoal” (por exemplo, vide REsp 1562617/SP, AC n. 1063783-86.2013.8.26.0100, AC n. 0713855-35.2020.8.07.0001). A partir disso, percebe-se que há margem para se discutir se as músicas criadas por sistemas de IA seriam passíveis de proteção pela Lei de Direitos Autorais, uma vez que, na prática, essas ferramentas meramente reproduzem padrões absorvidos mediante a análise das informações que lhes são disponibilizadas, sendo possível argumentar, portanto, que suas criações não são dotadas de “originalidade” ou “expressão artística pessoal”.
Por outro lado, as músicas de autoria de artistas tais como aqueles representados pela UMG, obviamente, estão contempladas pela definição de “obras intelectuais protegidas” e, a princípio, garantem aos seus titulares a tutela dos correlatos direitos morais[1] (artigo 24 da Lei de Direitos Autorais) e patrimoniais (artigo 29 da mesma Lei).
Em nossa visão, todavia, o treinamento das tecnologias de IA a partir do mero acesso a plataformas de streaming de música não implicaria, por si só, violações aos direitos autorais dos artistas que disponibilizam suas obras nesses espaços digitais.
Isso porque, atualmente, plataformas de streaming como Spotify, Deezer e Apple Music, por exemplo, contêm mais de 50 milhões de músicas em seus respectivos catálogos, que podem ser utilizadas pelos sistemas de IA, como um todo, para extração de padrões consagrados no cenário musical, sendo certo que, como não estamos falando de ideias
que podem ser atribuídas a um indivíduo ou grupo de indivíduos específico, torna-se mais difícil a demonstração da ocorrência de violação a direitos autorais.
Consideremos, exemplificativamente, a hipótese de um determinado sistema de IA acessar a Apple Music e, a partir da análise do acervo de música pop disponibilizado pela plataforma, extrair a conclusão de que esse gênero, por tendência, trabalha com o compasso musical (conceito utilizado para se definir o ritmo da música) dividido em quatro tempos. Por óbvio, a ideia de se compor uma música pop com essa divisão de compasso não exprime “originalidade”, “criatividade” ou “expressão artística pessoal”, razão pela qual sua utilização, por si só, não configura violação aos direitos autorais dos inúmeros artistas que também a aplicaram.
Além disso, não podemos esquecer que as plataformas de streaming, em sua maioria, contêm músicas que já caíram em domínio público. A Lei de Direitos Autorais prevê, em seus artigos 41 a 45, algumas dessas hipóteses, dentre as quais vale destacar aquela relativa à data de falecimento do autor: são de domínio público todas as obras de pessoas que morreram há pelo menos 70 anos contados “de 1° de janeiro do ano subsequente ao de seu falecimento” (artigo 41).
De outro lado, temos que levar em consideração também alguns casos recentemente noticiados em que as ferramentas de IA foram utilizadas para fins ilícitos, como a criação de músicas a partir da imitação da voz de artistas mundialmente conhecidos. Nesse ponto, vale lembrar que músicos profissionais, para assegurar a tutela de sua identidade e nome artísticos, costumam a proceder ao registro da marca no Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI, motivo pelo qual o indivíduo que utiliza a IA para imitar a voz de um determinado artista, por exemplo, se expõe ao risco de cometer crime contra registro de marca, conduta tipificada pelo artigo 189 da Lei n. 9.279/96, incorrida pelo agente que “reproduz, sem autorização do titular, no todo ou em parte, marca registrada, ou imita-a de modo que possa induzir confusão”.
Por essas razões, parece-nos que o treinamento das tecnologias de IA mediante o acesso a plataformas de streaming de música não configura, por si só, violação aos direitos autorais dos artistas que lá disponibilizam suas obras, cabendo um olhar atento, caso a caso, para identificação de eventuais plágios ou reproduções ilegais decorrentes da utilização desses sistemas.
[1] Apenas a título de exemplificação, nos termos do artigo 24 da Lei de Direitos Autorais, são direitos morais do autor: o de reivindicar, a qualquer tempo, a autoria da obra (inciso I); o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra (inciso IV); o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada (inciso V); etc.
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